Minhas Memórias. Capítulo 02
Capítulo 2. O Velório
Pois é, naquela manhã de 1963, quando meu irmão e eu voltamos da igreja, chorando muito e com a garrafa de água benta, a casa estava cheia de vizinhos e parentes que andavam pra lá e pra cá, enlouquecidos.
Minha mãe devia estar no quarto, pois não cheguei a vê-la. Uma prima que morava em uma vila próxima nos pegou pelas mãos e nos levou para a casa dela. Mais tarde, ela voltou para nos buscar.
Foi a segunda vez e, provavelmente, a última que vi o meu pai naquele dia muito louco. Deitado em um caixão fúnebre, sobre a mesa da sala de jantar, rodeado de familiares nem tão familiares assim, estava o meu pai. Agarrei-me às pernas da minha mãe, muito assustado. Não lembro de ter visto ou estado com o meu irmão naquele dia e nos dias que se seguiram.
Duas tias se revezavam em tentar me levar para morar com elas, o que me pareceu ser a vontade da minha mãe. Minha mãe cutucava a minha cabeça com os dedos e insistia:
— “Vai com ela, você não quer ir morar com a sua tia?”
Eu balançava a cabeça negativamente e grudava mais ainda o meu corpo na coxa da minha mãe. Eu queria ficar com ela, não queria ir a lugar nenhum. Hoje, penso que a minha mãe devia estar muito preocupada em como iria se virar sem o marido, talvez quisesse um tempo para se organizar sem os filhos, o que é compreensível. Mas, naquele dia, eu não entendi dessa maneira; senti-me mais uma vez rejeitado.
Sim, aquela não foi a primeira vez e nem a última em que me senti rejeitado, o que não quer dizer que eu realmente o fosse.
Um tempo antes, o meu irmão mais velho e a esposa foram buscar o meu irmão do meio para passar uma temporada na casa deles. Lembro que reclamei que queria ir também, e eles disseram que não me levavam porque eu era muito chato. Talvez por eu ser o caçula e, pelo que soube depois, o queridinho do papai — e o papai era bem brabo —, talvez isso afastasse os meus irmãos de mim, ou talvez eu fosse muito chato mesmo, de verdade.
Fui passar uns meses de férias com a minha tia em Teresópolis. Quando voltei, o meu irmão tinha ganhado da minha mãe — acho que foi no Natal — um revólver da marca “Xerife”. As espoletas eram tipo chumbinhos que se encaixavam no tambor, muito legal; o tambor girava que nem os de verdade. Tinha muito anúncio na televisão, deve ter custado caro, e eu queria um igual.
Não esqueço a minha decepção ao receber o meu presente: era um outro revólver, só que de lata, preto, feio pra diabo. O tambor era desenhado e não girava, não tinha compartimento para espoletas, e eu detestei; nunca brinquei com aquela coisa.
Eu não tinha idade para entender as razões do tratamento diferenciado, e mais uma vez veio aquele sentimento de rejeição.
É claro que a minha mãe lutava com dificuldades para nos criar, a grana era bem curta, e o brinquedo do meu irmão foi dado por uma tia rica e não pela minha mãe — eu só fiquei sabendo muitos anos depois. Mas, naquele momento, isso não importava.
Além do mais, o meu irmão dizia que eu tinha sido encontrado em uma lata de lixo na porta de casa. Por muitos anos, eu vivi com a dúvida de ser, ou não, filho dos meus pais, de ter sido realmente abandonado por alguém. Cheguei a pensar que eu era o filho bastardo de algum parente ou vizinho; foi complicado.
Aqueles acontecimentos me faziam sentir indesejado, rejeitado, sei lá. Eu achava aquilo tudo muito estranho. Comecei a pensar que não era merecedor do amor da minha mãe e dos meus irmãos, que eu deveria ser grato e não exigir nada de ninguém, mas sobrevivi a todos esses sentimentos confusos graças a sei lá o quê.
O velório foi em uma capela no cemitério do Caju. Tenho uma vaga recordação. Nunca mais voltei naquele lugar, se é que eu estive lá.
Depois do enterro, mais uma vez, eu não tenho a menor ideia do que foi feito do meu irmão. Lembro que fiquei uns tempos na casa da minha prima que morava na tal vila próxima de casa. Não lembro de passar as noites lá.
Não tenho muitas lembranças daqueles dias após o falecimento do meu pai. Nunca mais ouvi falar dele e não lembro de sentir saudade. Lembro de brincar muito com as outras crianças da vila e de um sentimento de liberdade, mais nada.
Minha mãe, após a morte do papai, teve que procurar um emprego. Naquela época, a mulher não era figura comum no mercado de trabalho. Com a ajuda dos familiares, ela conseguiu um emprego de secretária em uma agência de automóveis de um primo nosso.
Lembro que saíamos de casa bem cedo todos os dias para ir à escola. Minha mãe seguia comigo até a porta e depois pegava um bonde para o trabalho dela. Depois da escola, eu ficava sozinho e por conta própria.
Por uns tempos, eu fiquei durante o dia na casa da minha prima; depois, passei a ficar no nosso apartamento, sozinho. Acho que foi assim. Aos dez anos de idade, eu tinha as chaves de casa e podia fazer o que bem entendesse, sem ninguém pra me censurar.
O almoço era um prato de macarronada com um bife à milanesa que eu buscava todos os dias em um bar em frente: o bar do seu Zé. O jantar, a minha mãe fazia após chegar do trabalho. Ela também deixava alguns trocados para a merenda da escola que eu acabava não comendo, e o dinheiro ficava pra mim.
Um dia, com o dinheiro que eu juntei, peguei um ônibus e fui até a Ilha do Governador. Sem que a minha mãe soubesse, eu fui à praia.
Continua… aguardem o próximo capítulo.
Um momento muito difícil perder nossos pais!!!uma dor que nao sabemos explicar.
ResponderExcluir