Minhas Memórias capítulo 09
Capítulo 9 - Bonsucesso - O amigo
Minha mãe era uma supermulher: forte, trabalhadora, responsável, pontual e muito discreta.
A mim parecia que ela se preocupava demais com os filhos mais velhos e com os netos.
Algumas vezes a escutei conversando a meu respeito; ela dizia que eu, embora fosse o mais novo, era o mais responsável e independente dos três filhos e, por isso, não se preocupava muito comigo.
Particularmente, eu não concordava com essa afirmação, pois sentia falta de qualquer tipo de manifestação de carinho e de atenção.
Meu irmão mais velho era tido como um homem honesto, sério, responsável, um excelente pai, bom marido, protetor. Não era de muita conversa, mas não fazia mal a ninguém, e era muito respeitado em todos os lugares onde morou.
No entanto, até então, nunca havíamos conversado de verdade. Não nos conhecíamos.
Minha cunhada era uma menina em um corpo de mulher. Uma supermãe, uma esposa dedicada, uma verdadeira leoa. Tinha um temperamento forte, mas ao mesmo tempo era doce e carinhosa. Também não nos conhecíamos.
Meu irmão do meio era três anos mais velho que eu e era extremamente misterioso, não era de conversar sobre assuntos pessoais; as coisas dele eram muito bem guardadas e ele não dividia com ninguém. Não me queria por perto, mesmo assim eu o tinha como um herói.
Pois bem, estávamos todos juntos, sob o mesmo teto, pela primeira vez em nossas vidas.
Em Bonsucesso, minha mãe e meus irmãos saíam todas as manhãs e eu ficava em casa com meus sobrinhos e minha cunhada. Era como se estivéssemos sendo apresentados, dia após dia, eles e eu.
Para evitar um relacionamento mais próximo, eu passava meus dias trancado no quarto ouvindo discos, ou na rua, andando à toa.
Minha cunhada tentava de tudo para afinar nosso relacionamento, me tratava muito bem, me fazia vitaminas de banana, abacate, mamão... Sempre que fazia para os filhos, me chamava e me servia um ou dois copos, sem contar que ela era uma cozinheira de mão cheia. Ela me tratava como um irmão mais novo, rebelde e desconfiado. Na verdade, eu era "o tralha".
Eu gostava de brincar com as crianças, meus sobrinhos.
Não era muito simpático com o mais velho; ele me encarava como se ele fosse um adulto e eu um debiloide, e ele só tinha quatro aninhos. O problema é que ele era muito estudioso e inteligente e eu era "aquele" que foi expulso do colégio.
Já o segundo, o meu afilhado, esse era engraçado, uma pestinha sem-vergonha, ousado. O moleque tinha uns três anos.
Acho que eu me identificava bastante com ele. Eu gostava de jogá-lo para o alto e segurá-lo em seguida; ele gostava, soluçava de tanto rir.
Mas o meu xodozinho era a menina, a caçulinha.
Márcia é o nome dela, tinha uns dois anos.
Eu adorava fazer companhia a ela, brincar com ela, cuidar dela enquanto a mãe arrumava a casa e cuidava da comida.
Lembro de um fato que ficou marcado na minha memória: minha sobrinha ganhou da avó um pinto de feira.
A mãe não gostava que ela brincasse com o pinto dentro de casa, era para brincar só no quintal, e ai de quem desobedecesse à sua ordem: ela virava o "bicho".
Naquela manhã, minha cunhada tinha ido à feira e os meninos não estavam em casa. Ficamos eu e a Márcia sozinhos em um cômodo nos fundos da casa, ela brincando com o pintinho, mesmo sabendo da proibição, e eu fazendo companhia a ela.
Naquele dia fazia muito frio e eu achei que não teria mal nenhum deixar a menina brincar com o pintinho dentro de casa, sem a mãe saber, é claro.
Estávamos nos divertindo, até o momento em que escutamos o barulho da porta da frente se abrindo e a aproximação muito rápida da minha cunhada. Ela vinha em nossa direção, e vinha muito rápido; eu tinha que ser rápido também.
Eu era o mais velho, portanto o responsável. Eu tinha que dar um jeito de esconder o pintinho para que a mãe não visse e não ralhasse com a menina; a bronca era certa.
Eu me levantei num piscar de olhos e me preparei para sair, mas antes eu tinha que pegar o pintinho e tirá-lo dali. Foi quando eu vi a minha sobrinha, muito assustada, sentada em um tapete pequeno, desses que se colocam na porta de entrada de um ambiente, e não vi mais o pinto.
Não dava mais tempo de procurar, saí pela porta dos fundos antes que a minha cunhada entrasse no cômodo e rezei para que ela não visse o pinto dentro de casa. Depois eu voltaria e procuraria por ele.
Algo deu errado. Quando a minha cunhada chegou ao cômodo e viu a Márcia sozinha sentada no tapete, perguntou por mim. De onde eu estava, escutei:
— “Onde está o seu tio?”
A menina começou a chorar e continuou sentada. A mãe a chamou, mas ela não se mexeu e quanto mais a mãe chamava mais a Márcia chorava. Eu continuei escondido e comecei a me preocupar.
A merda aconteceu quando a mãe pegou a menina no colo, provavelmente para fazê-la parar de chorar.
Aconteceu que, enquanto eu estava distraído pensando em como esconder o pinto e sair dali, a Márcia pegou o pinto, colocou-o debaixo do tapete e sentou em cima. Tudo isso sem que eu visse, tudo isso no desespero para esconder o pinto da mãe, para não levar bronca e não apanhar, sei lá.
Então, a mãe colocou a menina no colo, só que a Márcia não soltou o tapete, ficou com a mãozinha agarrada nele e foi aí que o pinto ficou descoberto e apareceu.
O nome da minha cunhada era Célia. Quando ela viu o pinto esmagado no chão, embaixo do tapete, adivinha o que aconteceu, a quem ela culpou? Afinal, quem foi que deixou a Márcia brincar com o pinto dentro de casa? ... Pois é, onde estava o Cesar?
Eu carreguei por um bom tempo a culpa pela morte trágica daquele pintinho indefeso e pela surra que a Márcia levou.
Foi aí que eu resolvi que precisava ficar ainda menos tempo dentro de casa.
Fora isso, meu passatempo era ficar espionando os amigos do meu irmão do meio. Vou passar a chamá-lo pelo nome: Luís. Esse era o nome dele.
Às vezes, eu simplesmente andava de um lado para o outro na rua em frente à casa.
Em uma das esquinas ficava o Rio Faria Timbó e na outra uma avenida por onde circulavam algumas linhas de ônibus.
Atravessando essa avenida, na próxima esquina, ficava a Avenida Itaoca, era nesse espaço que eu passava o meu tempo até o anoitecer, caminhando da Avenida Itaoca até o Rio Faria Timbó, dois quarteirões. Foi o jeito que encontrei de ficar menos tempo dentro de casa.
Não demorou até que eu fizesse amizade com alguns rapazes amigos do meu irmão, do Luís.
Nos fins de semana, eles ficavam sentados na esquina da rua e eram as únicas pessoas estranhas com as quais eu tinha algum tipo de relacionamento, mesmo que de longe.
Uma tarde, estávamos sentados na esquina da rua, meu irmão, os amigos dele e eu, que sempre mantinha uma certa distância por imposição deles.
Apareceu um menino da minha idade. Ele morava na esquina da rua com o Rio Timbó. Eu já o tinha visto por ali; era uma casa grande, com um quintal de terra e um caminhão basculante na garagem. O terreno era cercado por um muro de pedras e uma grade de ferro. Uma vez o vi brincando de carrinho no quintal e tive vontade de brincar com ele.
Quando o menino passou na esquina, os rapazes levantaram e foram até ele gritando um monte de bobagens, pegaram a sua bolsa escolar e começaram a “bolinar” com ele, dando cascudos, falando bobagens... Enfim, uma espécie de bullying.
O garoto devia estar voltando da escola, provavelmente indo para casa e ficou totalmente sem graça com a abordagem. O curioso é que o menino mantinha a cabeça baixa o tempo todo enquanto os rapazes davam tapinhas nele e passavam as mãos em suas partes íntimas. Ele tentava se desvencilhar, mas eram uns três ou quatro marmanjos provocando o guri.
Eu tive a impressão de que eles se conheciam bem.
— “Mas como se conheciam bem se tinham idades totalmente diferentes?” — fiquei matutando.
Aqueles rapazes deviam ter entre 16 e 18 anos, o menino tinha uns 13. Alguma coisa estava errada naquela situação.
Meu irmão continuou sentado em companhia de outros dois rapazes que não participaram da abordagem.
Finalmente, o garoto apertou o passo e, sem me notar, passou correndo em direção ao final da rua.
A mesma situação voltou a acontecer na semana seguinte, mas desta vez eu me intrometi, tomei coragem e fui ajudar o menino. Fui gritando com os marmanjos, eu queria que eles parassem com aquela babaquice.
Os rapazes não gostaram da minha interferência e partiram para cima de mim também e a coisa ficou estranha. Só não rendeu e não ficou pior porque o meu irmão, o Luís, entrou na confusão para me proteger, apartou o grupo, o que não impediu que alguns dos amigos dele passassem a mão na minha bunda.
Meu irmão gritava comigo:
— “Vai embora daqui!!! Desaparece ou te enfio a porrada!!!” — Parecia sair fogo das ventas dele. Era o meu herói me salvando mais uma vez.
Não perdi tempo, o menino e eu saímos correndo em direção à casa dele.
Daquele dia em diante, ficamos amigos.
Finalmente, eu tinha um amigo da minha idade naquele lugar, até então, hostil.
Continua…. Breve um novo capítulo
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