Minhas Memórias capítulo 14


 Capítulo 14 - O Carro e o Quartel



Meu irmão Mário foi quem concluiu a compra do meu carro, um Gordini IV, de cor grená, ano 1968. 
O carro estava em ótimo estado, pertencia a um mecânico, dono de uma oficina em um subúrbio do Rio.

Fui até a casa do meu irmão buscar o carro e, de lá até Botafogo, voltei dirigindo o Gordini. Meu irmão Mário veio me seguindo no seu Aero Willys, para ter a certeza de que eu chegaria bem. 

Fiquei muito feliz em saber que aquele carrinho, mesmo velho, era meu de verdade.

Depois disso, passeei muito com a mamãe. 
Íamos comer cachorro-quente no Leme, à noite fazíamos compras no mercado, e aos finais de semana eu a levava para a casa do meu irmão mais velho, para ver os netos que ela amava tanto. Em troca, ela enchia o tanque de gasolina.

Era uma sensação de liberdade sem explicação. Eu não podia imaginar que um carro pudesse fazer tanta diferença na vida da gente.

Não demorou muito e fui convocado para prestar o serviço militar obrigatório. O exército me chamava.

O SERVIÇO MILITAR

Todos os homens da minha família serviram na aeronáutica, mas eu, para contraria-los, me apresentei ao Exército Brasileiro, sob protestos.

Isso foi em 1973, no quartel da Artilharia de Costa da Fortaleza de São João, na Urca.

Meus familiares não acreditavam que eu pudesse dar conta do exército, e as expectativas eram as piores. 
Minha mãe ficou visivelmente preocupada e meus irmãos faziam piada da situação. Afinal, eu era um magrelo cabeludo, mimado e cheio de vontades, uma versão civilizada dos hippies da época. 
Mas, para o espanto de muitos, as expectativas foram frustradas: eu gostei de servir ao exército.

Lembro de um fato inusitado que aconteceu após quatro ou cinco meses de muitas marchas, faxinas, plantões e educação física bastante puxada. 

Aliás, eu detestava a hora da educação física; aquilo era estressante. Eu era a favor da lei do menor esforço, nada de exercícios físicos, eu não conseguia dar uma volta sequer na pista de atletismo, o cabo que acompanhava os recrutas tinha que me empurrar enquanto eu esgoelava e tentava parar.

MINHA ROTINA NAQUELES DIAS.

Todas as manhãs bem cedo, eu levantava, tomava banho, vestia o uniforme de passeio, tomava um pequeno café e seguia com o meu carro para o quartel. 
Lá, havia duas tropas: a Bateria de Comando e Serviços e a Bateria de Canhões. Eu servia na primeira, logo após a subida da ponte.

A ponte é uma subida que liga a Escola de Educação Física do Exército à Fortaleza de São João onde ficam as duas baterias. A passagem por ela é obrigatória. 

Ao lado da minha Bateria, tinha uma estradinha que seguia até a costa, onde ficava o antigo forte e os canhões. Era nessa estradinha que nós, recrutas, estacionávamos os nossos carros. Além de mim, mais dois ou três recrutas iam de carro para o quartel.

Eu chegava, ia até o alojamento, colocava a farda do expediente e em seguida me encaminhava para a formatura, onde eram feitas a chamada e a leitura da ordem do dia. 
Todos tínhamos uma função administrativa dentro da Bateria. 

Eu trabalhava na sargenteação, um departamento onde se confeccionavam os vales para o rancho e se fazia a distribuição das senhas para os soldados retirarem qualquer equipamento militar para uso em serviço. 
Após a leitura da ordem do dia, era para lá que eu me dirigia.

Aquela manhã foi diferente: o comandante foi pessoalmente à formatura e pediu que eu me retirasse da fila e o aguardasse no seu gabinete.

- "Fiz alguma merda!"- pensei desesperado.

O comandante era um sujeito sisudo, duro nas palavras, e logo se via que era um homem que gostava do militarismo. Todos tinham muito medo e respeito por ele.
Acatei a sua ordem e imediatamente me dirigi ao seu gabinete. Lá, rezei muito enquanto o esperava. 

Ao mesmo tempo em que eu morria de medo, sem saber a razão que o levou a me tirar da formatura, eu estava muito curioso.

Finalmente, ele entrou na sala, fechou a porta e em seguida trancou as janelas. Foi quando comecei a me preocupar de verdade. 
Ele me perguntou se eu havia levado o carro naquele dia, e eu respondi positivamente.

Em seguida, ele me contou esta história: 

Na noite anterior, ele e o outro comandante da Bateria de Canhões foram a um motel na Barra da Tijuca e, no entusiasmo com a sua amante, perdeu um relógio. 
O relógio foi um presente da esposa, filha de um general de divisão, homem forte do Exército Brasileiro e temido pelos comandantes.
Ele me ofereceu seu apadrinhamento até a minha baixa do serviço militar, caso eu fosse ao tal motel, encontrasse o relógio e o trouxesse para ele antes da chamada para a educação física. 
Ele também contou que a esposa perguntou pelo relógio, e ele respondeu que o havia deixado no seu gabinete, no quartel. Por isso, era importante chegar em casa com ele quando fosse trocar o uniforme, colocar o de educação física.

Ah, esqueci de citar que dentro do quartel existiam residências para os oficiais e sargentos. Ele morava com a esposa em um apartamento luxuoso nessa área residencial, dentro da Escola de Educação Física do Exército.

Essa era a minha oportunidade de transformar a minha obrigação de servir à pátria em algo mais agradável, como, por exemplo, não tirar mais serviço nem fazer educação física. 

- "Se ele vai me apadrinhar, que seja me livrando desses tormentos"- pensei.

Enfim, fui até o tal motel dirigindo o meu Gordini como um louco.

Na recepção, me informaram que as camareiras já haviam limpado o apartamento e não tinham encontrado nenhum relógio. Mas, devido à minha insistência, deixaram que eu fosse até o quarto para fazer uma espécie de “pente fino”. Eu precisava encontrar o relógio; era a minha alforria.

Nesse motel, o comandante era bastante conhecido, um cliente VIP. 
Os funcionários contaram que ele costumava fazer festinhas todas as semanas, no mesmo quarto, com diversas mulheres, além de ser muito generoso nas gorjetas… 
Conclusão: fiquei sabendo mais do que devia.
Eu precisava voltar para o quartel com aquele bendito relógio e bem rápido. 

O tempo estava passando e eu ali, conversando com os recepcionistas como se não tivesse nenhum compromisso. Eu tinha que estar de volta às 10h30, horário estabelecido pelo comandante. Ele ia em casa trocar o uniforme para a educação física exatamente nesse horário.

Continuando: o quarto estava limpo e arrumado, as gavetas e o armário, vazios. 
No chão, tinha um tapete vermelho de uma grossura e maciez incríveis, um luxo. 
Me ajoelhei sobre ele, ao lado da cama, e enfiei o braço por baixo dela, fazendo movimentos tipo limpador de para-brisas. 
Os olhos estavam fechados, e eu tinha medo de colocar a mão em alguma coisa estranha ou desagradável, eu estava em um motel.

De repente, senti algo gelado e sólido, tomei coragem e apalpei tentando identificar o objeto.

- "Achei!!!"- gritei eufórico. 

Agradeci rapidamente a todos e saí do motel, carregando o relógio e dirigindo como um doido pela Avenida Niemeyer, Delfim Moreira, Vieira Souto, Francisco Otaviano, Atlântica, Princesa Izabel, Praia Vermelha e, finalmente, Urca. 

Quando cheguei ao quartel, já eram 10h35. 
Eu havia me atrasado cinco minutos. 

Subi a ponte que levava à minha bateria, na esperança de que o comandante tivesse atrasado e ainda estivesse me aguardando.

- "Meu Deus, me ajude, por favor! Não posso perder essa oportunidade",- rezei com toda a minha fé.

Foi quando avistei o comandante. 

Ele vinha caminhando bem devagar, triste, preocupado, cabisbaixo, pensando provavelmente em alguma desculpa para dar à esposa. Devia estar tão desesperado que não percebeu a minha aproximação.

Buzinei, mesmo sendo proibido, parei ao lado dele. Ele arregalou os olhos e, com uma expressão de esperança, perguntou:

- "E aí, Salgueiro, encontrou o bagulho?" 

Estava frágil como uma criança em perigo pedindo socorro. Eu nunca imaginei ver aquela imagem.

Estiquei o braço para fora do veículo e, quando ele chegou bem próximo, coloquei o relógio discretamente em sua mão. Algumas lágrimas rolaram dos olhos dele. Não conseguiu esconder.
Ele colocou o relógio no pulso e disse:

- "Hoje você não vai à educação física. Depois do rancho, vá para o meu gabinete, vamos conversar."

Agora, ele estava feliz, poderoso novamente.

- "Uhuu!"- comemorei em silêncio.

Os próximos meses foram de muita tranquilidade. Eu não fui mais escalado para fazer faxina, fui liberado da educação física e dos plantões nos finais de semana e feriados. 

Ninguém nunca ficou sabendo do segredo do meu comandante.

Ao dar baixa do serviço militar, voltei para o grupo de teatro, revi meus antigos amigos e conheci uma menina linda e rica que viria a ser a minha namorada.


Continua…. Breve mais um capítulo 

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