Minhas Memórias - Capitulo 19
Capítulo 19 - A Doutrina e a Dor
Para quem pensa que dormir em um estabelecimento comercial é mole, posso garantir que não foi tão simples assim.
Morar no estúdio de teatro tinha as suas vantagens, eu estava na zona sul carioca, perto de tudo que de importante acontecia no Rio de Janeiro e também dos poucos amigos que fiz no período em que morei em Botafogo.
Mas tinham os inconvenientes, por exemplo: o estúdio patrocinava cursos que iniciavam as 08 horas da manhã e encerravam as 23 horas.
Eu tinha que estar acordado, de banho tomado e completamente vestido, todas as manhãs, antes das 07:30 horas.
Sem contar que o pessoal da limpeza chegava bem antes disso.
Depois de aberto o estúdio, eu tinha duas opções, ou ficava fazendo aulas ou ia bater pernas na rua.
Eu sempre optava por bater pernas na rua, mas havia outro inconveniente; o prédio fechava às 23:30 horas e se eu chegasse após esse horário ficaria trancado do lado de fora pois, não sei por qual razão, o Leonardo não me deu as cópias das chaves.
Depois de encerrado o horário dos cursos, o Leonardo e o produtor, seu sócio, fechavam as portas do estúdio comigo dentro e só retornavam na manhã seguinte.
A porta principal tinha um dispositivo eletrônico que a abria caso houvesse uma emergência e eu precisasse sair às pressas.
Três vezes por semana eram feitos os ensaios de peças e enquetes para apresentação ao público, nesses dias eu ficava no estúdio e participava nas funções de iluminador e sonoplasta, marcando os pontos de luz e os respectivos áudios.
Nos outros dias, enquanto batia pernas, aproveitava pra procurar emprego.
Andava a pé do Catete até o Centro da cidade, no caminho ia me inscrevendo para vagas de trabalho em bancos comerciais, eu achava que seria mais fácil conseguir colocação nessa área.
Numa dessas noites, depois de ter batido pernas pela cidade e visitado várias agências de emprego, resolvi ir até a casa de um amigo, da época do quartel, morava em Botafogo, fazia muito tempo que eu não o via.
Comemoramos muito o nosso reencontro e ele me convidou para tomar uns chopes em Copacabana, por conta dele é claro, eu aceitei.
As horas passaram e quando olhei o relógio um arrepio subiu pela minha coluna, já eram mais de 23:30 horas, eu estava atrasado, precisava ir embora.
O meu amigo me levou até o Catete e me deixou na esquina do prédio, mas não adiantou de nada, a portaria estava trancada.
Chamei o porteiro, ele me deixou entrar e me alertou que não havia ninguém no estúdio.
Pois é, eu estava do lado de fora, cheio de sono, sem as chaves e sem a menor chance de entrar.
Acho que foi à primeira vez que senti pânico na minha vida.
Não tinha como dormir no corredor, era proibido pelo condomínio.
Não tinha como ir a qualquer outro lugar, eu estava sem dinheiro e já era muito tarde.
Lembram do meu amigo invisível?
Conversamos por alguns minutos buscando uma solução “pr’aquela” situação.
Voltei caminhando desolado pela rua Corrêa Dutra até à praia do Flamengo pensando no que fazer.
Avistei um banco de madeira na calçada da avenida, próximo a um ponto de ônibus.
A Avenida estava deserta.
Olhei para o céu estrelado e exclamei em voz alta:
- “seja o que Deus quiser!!!”
Me dirigi até o banco, deitei o meu corpo cansado sobre ele e sem dar espaço para o medo, torcendo para não chover, dormi, apaguei, até o sol raiar.
Naquela época, 1975/76, não havia tanto perigo de assaltos, os ônibus circulavam a noite inteira e as ruas tinham muita iluminação.
Acordei intacto, nem meu relógio foi roubado.
Meio sonolento, dei uma checada se, além do relógio, todo o resto estava no lugar, se nada havia sido tirado de mim enquanto dormia.
Agradeci a Deus e voltei para o estúdio que já estava aberto, o pessoal da faxina já se encontrava trabalhando.
Aproveitei o tempo que faltava para a primeira aula e tomei um demorado banho.
O Leonardo chegou e não fez nenhum comentário sobre eu não ter aparecido na noite anterior, muito menos o seu sócio, também não fizeram perguntas sobre onde eu dormi, a coisa ficou do jeito que ficou sem maiores e nem menores explicações.
Logo percebi que estavam me doutrinando, me condicionando aos horários e as regras deles.
Eu não era livre como pensava, podia morar ali mas tinha que cumprir horários.
Talvez tivesse sido melhor ter ficado na casa do meu irmão, ao lado da minha mãe doente, no subúrbio distante, lá eu tinha as chaves da porta e ninguém ligava pro que eu fazia, em compensação eu também não sentia nada por eles, a não ser pela minha mãe, é óbvio.
Mas e se o meu irmão impusesse regras ?… afinal a casa era dele… pelo menos ele era da familia.
Foi assim que cresci e fui criado, me acostumei largado, sem regras.
No estúdio eu estava submetido aos dissabores de amigos… verdadeiros estranhos.
Eu precisava urgentemente arrumar um emprego, isso sim, sair daquela situação constrangedora, seguir a minha vida.
Depois daquela experiência me tornei arredio com relação ao pessoal do teatro, me concentrei nas entrevistas e nas agências de emprego.
Mas, numa manhã bem cedo, o estúdio ainda se encontrava fechado ao público, o produtor do grupo de teatro chegou esbaforido com um recado da minha mãe;
“ela chamava todos os filhos, com urgência, para uma conversa no hospital onde estava internada fazia algum tempo”.
Foi ele mesmo que se ofereceu e me levou no seu carro até o hospital.
Ele não me contou detalhes de como ficou sabendo do chamado, mas fiquei bastante apreensivo.
Quando cheguei no hospital os meus irmãos e cunhadas já estavam lá, não deixaram eu ir ao encontro da minha mãex
Havia alguma coisa estranha no ar, falavam coisas ininteligíveis, eu não compreendia, eu só queria falar com a minha mãe, acho até que forcei a barra e apelei para a ignorância, não recordo muito bem, tudo muito confuso.
A minha visão estava turva e a audição estava confusa, as coisas se embaralhavam à minha volta.
Éra como se eu ja soubesse o que estava acontecendo.
Uma mulher de branco me pegou pelos ombros e falou alguma coisa, eu não escutei, eu não escutava nada, eu não queria escutar, eu só queria ver a minha mãe.
Os lábios da mulher se movimentavam mas eu não ouvia o que eles diziam.
- “ela faleceu essa noite” - acho que ela falou isso.
- “ela faleceu essa noite”
- “ela está no necrotério do hospital”
- “ela está no necrotério do hospital”
- “você não pode ver ela agora”
- “ela faleceu essa noite”
Aquelas frases explodiram na minha cabeça como bombas, eu não aguentei e desmoronei.
Lembro de estar encostado em uma parede e me faltarem as pernas.
Meu corpo escorregou lentamente por aquela parede até o chão.
Uma dor imensa doeu no meu peito.
Não conseguia respirar, eu buscava o oxigênio com todas as minhas forças, mas as minhas forças não eram o suficiente para trazê-lo até mim.
O soluço de um choro preso na garganta me travou a respiração até que um grito desesperado e doído se libertou pela minha boca aliviando o meu peito e me trazendo de volta à triste realidade.
O produtor, atendendo a um pedido meu, me pegou pelos braços e me tirou daquele lugar.
Não lembro pra onde ele me levou.
Lembro que fiquei só, em algum lugar, e derramei todo o meu pranto de culpa por ter abandonado a minha mãe no leito de um hospital, e de dor por ter perdido a pessoa que mais amei em toda a minha vida.
Continua…. Breve mais um capitulo.
🌷🌷🌷
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