Minhas Memórias - Capitulo 26
Capítulo 26 - A VIAGEM (O Barraco e a Índia)
Era um grupo grande. Garotos e garotas dividiam o mesmo espaço no acampamento do Mutuca. Era uma área plana à beira do rio, bastante arborizada. As barracas se espalhavam entre as árvores. Havia muitas redes amarradas e uma grande fogueira no centro, onde um grupo de meninas cozinhava alguma coisa. O lugar era muito bonito.
Assim que Chico estacionou o carro, um grupo correu em nossa direção, mas não visualizei Edilson. Chico fez as apresentações e eu me apressei a perguntar se Edilson estava no acampamento. Minha preocupação estava nas malas que ficaram no hotel; pagamos apenas uma diária e o prazo vencia às 12 horas da manhã seguinte.
Uma índia muito linda, cor de jambo, magra, alta, de dentes brancos, cabelos lisos e negros, pés finos e delicados, com uma fala mansa e deliciosa, ofereceu-se para me levar até Edilson. Ela pegou na minha mão e foi me puxando por entre as barracas, perguntando sobre como era o Rio de Janeiro, o mar, o que eu fazia, onde conheci Edilson e por aí foi. Falou repetidamente que tinha muita vontade de conhecer o Rio de Janeiro, que adorava os cariocas, etc., etc., etc... Era uma menina bem falante.
Meus cabelos estavam longos, batiam nos ombros, eram loiros e bem cacheados. Por serem finos, faziam volume e chamavam atenção. Não estavam bem tratados, mas combinavam com o meu rosto fino e bronzeado e contrastavam com a negritude daquela menina que me puxava pelo braço e que não escondia sua curiosidade. Ela fazia questão de me olhar, de vez em quando, como se estivesse fotografando cada pedaço do meu corpo. Tive a ligeira sensação de que ela flertava comigo, ou com os meus cabelos.
Finalmente, encontramos Edilson que, junto com outros rapazes, brincava de mergulhar, do alto de uma árvore, nas águas geladas do Rio Mutuca. A sorte estava lançada. A partir daquele momento, a continuidade da viagem para Rondônia dependeria do resultado da conversa com o meu amigo cuiabano que eu não via havia pelo menos dois anos. O amanhã estava em jogo. Estávamos presos em Cuiabá, sem dinheiro para seguir, voltar ou até mesmo permanecer.
A índia foi anunciando, aos gritos, a nossa chegada:
— “Visita para o Edilson!” — gritou.
Pareceu-me que Edilson era uma espécie de líder da garotada; tudo naquele lugar girava em torno dele. Ele olhou para mim e acho que não me reconheceu... Pudera! Nos conhecemos no Rio de Janeiro, fazendo parte de um grupo de teatro. Dois anos ou mais se passaram. É claro que precisou de um tempo para organizar todas as informações na sua cabeça.
— “Salgueiro?” — exclamou.
— “Sou eu mesmo, meu amigo!” — respondi.
Ele abriu um largo sorriso e veio em minha direção com os braços abertos. A recepção me deixou confiante. Pareceu-me que ele ficou bem surpreso e feliz em me ver. Puxou-me pelo braço até a beira do rio e iniciou um longo interrogatório. Queria saber de Leonardo, o nosso professor no curso de teatro; queria saber do grupo de amigos que fez por lá; queria notícias do Rio de Janeiro e saber a razão da minha visita a Cuiabá e, finalmente, como eu o havia encontrado.
Tudo foi tão intenso que esqueci de Paulo.
Enquanto conversávamos, a índia, Ana Zilda, nos interrompeu para apresentar Paulo a Edilson e me apresentou uma morena muito bonita de nome Linda.
Consegui contar toda a história que me levou até ali, sob os olhares atentos de Edilson e das duas meninas.
Ana Zilda, a índia, me olhava com um olhar penetrante, seguia cada gesto meu, cada expressão, como se estivesse assistindo a um filme. Havia um interesse oculto naquele olhar. Não me incomodava, mas não tinha como não notar.
Edilson prometeu dar um jeito para tirar as malas do hotel e insistiu que passássemos a noite no acampamento. Tivemos que aceitar o convite, não havia outro jeito. Nossa carona, Chico, já tinha se mandado, e por ali não passava condução. Também era fato que eu não queria ficar longe de Edilson. Tinha receio de não achá-lo de novo, e esse fator fazia toda a diferença.
Mas ficar no acampamento se tornou um problema: eu e Paulo estávamos sem a bagagem, sem mudas de roupa para trocar. A garotada deu logo um jeito, arrumaram umas sungas e umas camisetas emprestadas, e o problema estava solucionado.
As meninas, Ana Zilda e Linda, não largaram da gente em momento algum, e foi nesse feriadão de Carnaval que a índia e eu começamos a namorar. Paulo pegou carona e também começou a namorar com Linda. Conclusão: ficamos até a Quarta-feira de Cinzas.
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Depois de levar as meninas em casa, Edilson seguiu comigo e Paulo até o Hotel Presidente. Tínhamos mais três diárias para pagar e nenhum dinheiro. O plano de Edilson era sairmos do hotel sem pagar as diárias. Enfim, um calote.
“Se o sobrinho da deputada queria que déssemos um calote no hotel, quem éramos nós para discutirmos os planos dele?”- pensei, ao trocar olhares com Paulo.
Ele estacionou o carro no quarteirão seguinte ao do hotel e ficou aguardando, enquanto fomos buscar as malas.
Paulo arrumou as peças mais importantes em duas malas e deixou as não tão necessárias em uma terceira e última mala. Eu fui com essa última mala até a recepção, na intenção de negociar as diárias. Enquanto isso, Paulo saía de fininho, às escondidas, com as outras duas malas e seguia até o carro, onde Edilson nos aguardava.
Esse foi o plano do Baracat, e foi assim que fizemos. A mala que estava comigo foi confiscada, como previsto.
Edilson dirigiu até Várzea Grande, atravessou toda a Av. Couto Magalhães até chegar a um barraco de madeira azul, localizado bem na saída do centro da cidade. Ficava em um declive, era a segunda casa da rua de chão. Na esquina, tinha um posto de gasolina. O terreno era comprido e estreito, estava coberto de mato, parecia abandonado.
O barraco tinha três cômodos. O primeiro era uma espécie de sala e estava vazio. O do meio tinha uma cama de solteiro e uma rede. O terceiro e último cômodo tinha uma pia e uma mesa com um fogareiro; vamos dizer que era a cozinha.
Na cozinha, havia um cômodo extra, parecendo um boxe. Nele, tinha um balde vazio e uma caneca dentro. Não tinha água corrente.
As lâmpadas, presas em interruptores, ficavam penduradas no teto, uma lâmpada por cômodo.
O lugar tinha duas entradas, uma na frente e outra nos fundos. As paredes eram feitas com tábuas de obra, tinham frestas que permitiam a entrada da luz da rua e, em noites de lua cheia, a luz do luar.
Após mostrar o barraco, ele nos entregou duas chaves amarradas em um barbante e uma etiqueta de papel, dizendo que o lugar era nosso até que tivéssemos a oportunidade de seguir viagem.
— “Mais tarde eu passo aqui para deixar uns travesseiros e cobertores” — completou.
Eu poderia afirmar que estávamos bem melhor acomodados no acampamento, à beira do Rio Mutuca.
Nos dias que se seguiram, ficávamos acompanhando a situação das chuvas na região e a possível liberação da estrada.
Continua…. Breve um novo capítulo.
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