Minhas Memórias - Capitulo 29

 


 Capítulo 29: A Viagem- Segunda Parte 


Aquele acidente, onde quase perdi meus dedos, foi o divisor de águas. Minha vontade era voltar para casa, mas... que casa? Mato Grosso não fazia mais sentido na minha vida. Várzea Grande ficou pequena.

Sem trabalho, com casamento marcado... eu não estava feliz, tudo me incomodava.
Eu só precisava do salário de um mês de trabalho para comprar uma passagem de volta para o Rio de Janeiro.

Já estávamos em dezembro. Deixei Ana Zilda em casa e fui caminhando até o barraco, a cabeça fervilhando. Era como se alguém me seguisse, eu estava inquieto. 

- "Era aquilo que eu queria de verdade?"

Não, eu não queria mais casar, não queria passar o resto da minha vida em Várzea Grande, eu queria voltar para a minha terra e recomeçar. Ana sofreria um golpe, com certeza, mas o certo a se fazer era conversar com ela.

Tomei um banho. Ao deitar, uma luz intensa surgiu repentinamente por trás e acima da minha cabeça. Levantei na intenção de apagar alguma lâmpada que, por esquecimento, estivesse acesa, mas a casa estava às escuras. Talvez fosse o reflexo dos faróis dos carros na estrada. Voltei a deitar, e a luz reapareceu. Não, não vinha da estrada. Eu não estava bem, estava confuso, tive medo, arrepios e calafrios pelo corpo todo. Me cobri todo, incluindo a cabeça, ignorei o calor de quase 40 graus e apaguei.

A cena dos meus dedos decepados, a dor, o sequestro no hospital, a decepção com a perda da vaga de emprego... eram sentimentos fortes presentes em mim. Eu precisava sair daquele pesadelo.

Na manhã seguinte, levantei com nova disposição e clareza sobre o futuro. Misticamente, conectei a mudança de humor à luz da noite anterior, aceitando qualquer explicação, quem sabe um aviso vindo de uma outra dimensão? Acordei feliz.

Liguei a cobrar para o Paulo, meu único contato no Rio. Tive sorte de ele atender. Contei sobre o acidente, o desemprego e a vontade de voltar, mas onde eu iria ficar? Ele prometeu me ajudar, achar uma solução. Agi por pura intuição, mas aquela conversa acendeu uma chama, a esperança de retornar.

Passei aquele dia com Ana e sua família, omitindo meus planos de "fuga".

Poucos dias depois, encontrei uma carta do Paulo. Ele enviava dinheiro para a passagem de ônibus e dizia que sua avó, Dona Guiomar, me receberia em casa e me acomodaria no quartinho da empregada o tempo que fosse preciso. No fim, ele pediu para avisar o horário da chegada na rodoviária, pois iria me buscar.

Sem coragem para me despedir dos amigos e da Ana, embarquei no ônibus da Andorinha às 5 horas da manhã do dia seguinte com destino ao Rio de Janeiro, escala em Campo Grande. Eu estava em fuga.

Foram trinta e seis horas de ansiedade. No Rio, Paulo me esperava e me levou à casa de sua avó, em Copacabana. Uma senhora simpática que me acolheu gentilmente.

O quarto da empregada, que tinha se transformado em despensa, parecia um pequeno acampamento: lá Dona Guiomar colocou um colchão de solteiro e alguns cobertores. Algumas prateleiras tinham sido adaptadas para que eu colocasse minhas roupas. Foi naquele canto improvisado, entre armários e prateleiras, que me instalei por cerca de 30 dias, com direito a café, almoço e jantar.

O Paulo, sempre incansável, continuou me ajudando. Ele soube que um amigo estava deixando o emprego na Golden Cross e perguntou se ele conseguiria, antes de sair, uma entrevista no RH para mim. Eu fui à entrevista e consegui ser contratado. Não era um grande emprego, mas eu tinha um salário e benefícios como Ticket Alimentação e plano de saúde.

Empregado, mudei para uma pensão na Travessa Santa Leocádia, também em Copacabana, muito próximo à casa do Paulo. Era um quarto com doze pessoas acomodadas em quatro triliches. Já era um avanço, de uma despensa para uma triliche.

Trabalhei na Golden Cross por três anos e meio, fui promovido duas vezes, comecei a fazer musculação na ACM da Lapa e ainda, por um golpe de sorte, ganhei na milhar do jogo do bicho. Com o dinheiro paguei o empréstimo que fiz para realizar a frustrada viagem a Rondônia, livrando-me da pressão daquela dívida.

O Paulo era dono de uma habilidade extraordinária com artesanato, ganhava um bom dinheiro vendendo suas criações (cintos, suspensórios, mochilas e até roupas de couro). Ele vendia entre os amigos, que indicavam outros fregueses, assim como eu fazia com as meias antes de viajar.

Vendo aquele potencial, fiz a proposta de uma sociedade: eu entraria com o dinheiro, compraria o maquinário necessário, e ele entraria com a criação.

Com as minhas economias, montamos a pequena fábrica de acessórios de couro na sala da Dona Guiomar e criamos um mostruário. A primeira grande venda foi para a Yes Brasil, do Simão Azulay. 

O Paulo não acreditava que conseguiríamos vender suas criações na mais badalada loja jovem da cidade. Mas eu não havia entrado naquele negócio para perder.

Liguei para a confecção, marquei a entrevista para mostrar o produto e encaramos o próprio Simão na sua loja do Rio Sul. Vendemos toda a produção e começamos a expansão. Alugamos um sobrado no Grajaú e transferimos a fábrica. Eu pedi demissão da Golden Cross para me dedicar integralmente à confecção.

Com o dinheiro que ganhamos, compramos uma moto para cada um e voltamos às noitadas. Éramos parceiros em tudo. A minha vida estava começando a dar certo.

Expandimos em direção ao terraço do sobrado e criamos uma área para pintar o nosso couro. Criamos cores exclusivas; foi quando o Simão pediu exclusividade nos seus pedidos e nós aceitamos.

Tivemos um longo período de crescimento, mas a exclusividade nos encurralou. O Brasil atravessava um período de inflação galopante, de 40% a 75% ao mês. Nossa margem de lucro e nosso potencial de investimento foram diminuindo. Nossas vendas eram faturadas para recebimento em 30, 60, 90 dias; o prazo mais a inflação comia boa parte dos lucros, se não todo o lucro.

Precisávamos de um profissional para administrar a empresa, mas não tínhamos verba suficiente para investir, e o tempo não perdoou.

Quebramos, fomos forçados a vender a pequena fábrica para o próprio Simão Azulay, da Yes Brasil, o único que se interessou. Caímos em uma cilada. Eu estava novamente desempregado.



Continua... breve mais um capítulo.


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